quarta-feira, 2 de março de 2011

CARNAVAL DE 85

Já faz alguns dias que o pessoal começou os ensaios para o desfile deste ano.Daqui da minha varanda posso ouvir o som do batuque ao longe.Eu já morei bem no epicentro de tudo isso.Minha antiga casa ficava bem ao lado da sede da "guerreiros do Samba",que já foi a minha escola do coração,e que foi a escola onde Zenaide desfilava todos os anos.Ela era a rainha da escola.Ela era linda,maravilhosa!Zenaide...Arre!Que toda vez ela invade meus pensamentos,essa mulher!!Eu queria muito esquecer Zenaide.Mas todo ano quando começam os batuques do ensaio da "guerreiros",ela se apossa dos meus pansamentos como se fosse um encosto mesmo,uma assombração que vem pra me atormentar.Todo fevereiro é assim,uma tristeza que nem a cachaça mais "braba" do botequim do Juca dá jeito.Tristeza.Há uns cinco anos atrás resolvi voltar a assistir os desfiles na rua.Vou,tomo uma cervejinha com os amigos,bato um papo,assisto uma meia hora de desfile,se pintar uma paquera,ótimo,levo a dona pra casa,ponho um Martinho da Vila na "vitrola",uma garrafa de vinho e pronto!uma noite de amor,que eu também não sou de ferro né?Mas sei que o que eu queria mesmo é ter me casado com a Zenaide,ter tido uns três filhos com ela ,ter envelhecido ao lado dela.Mas tudo isso foi um sonho.Sonho que se transformou em pesadelo naquela noite de 1985.Era carnaval.Zenaide era a rainha da escola.E eu,mesmo já estando separado dela...bem,que eu me lembre...eu ainda era feliz.


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A quem possa interessar,meu nome é João.Tenho 58 anos e trabalho desde os 30 como funcionário público municipal da cidade de Areianópolis ,onde nasci.Nunca me casei e nem tive filhos.Cheguei a morar 9 meses junto com Zenaide,juntamos os trapos como se diz por ai,mas não deu certo.Cheguei a ficar noivo da Elisa também,moça boa,bonita,prendada,dessas que nasceram para o casamento mesmo.Mas não deu certo também e rompemos o noivado.O amor de minha vida sempre foi a Zenaide mesmo,desde pequenos,quando ela veio de Salvador com a família.Compraram uma casa vizinha à dos meus pais.E eu com meus oito anos de idade me encantei com aquela moreninha linda de cabelos encaracolados,negros como a noite e de olhos fulminantes.Nossas famílias ficaram muito amigas e eu não saia da casa dela e ela não saia da minha.Nossas famílias eram do samba e desde cedo começamos a participar dos ensaios da "guerreiros do samba "comecei a fazer parte da bateria e Zenaide saia como passista na ala dos adolescentes.Com o passar dos anos minha afeição por Zenaide começou a se transformar em algo sério,muito sério,que me tirava o sono e fazia das minhas noites um verdadeiro martírio.Eu só pensava nela,a noite inteira,seus olhos me queimando,o cheiro de seus cabelos,seus lábios carnudos,seu corpo que se transformava a cada dia,se enchendo de curvas e saliências que me enlouqueciam.Até o dia em que não pude mais me conter e declarei a ela tudo o que eu sentia.Começamos a namorar e fomos muito felizes durante os primeiros anos.Até que eu percebi que en todos os lugares em que íamos,Zenaide era o grande centro das atenções,dos olhares masculinos,e o que foi pior,eu descobri que ela gostava desse assédio.Ela já não era uma adolescente magrela,havia se tornado uma mulher linda,provocante,que chamava mesmo a atençao em qualquer lugar que entrasse..Nos desfiles de carnaval,não havia uma mulher que fosse mais linda que Zenaide.E nas rodinhas com os amigos,só se comentava de como a Zenaide cada dia que passava ficava mais linda,que eu era um sujeito de sorte,que não sei mais o que ...Na verdade eu sabia que todos os meus amigos cobiçavam a Zenaide,e que torciam pro nosso relacionamento não dar certo.E o pior é que a danada adorava o assédio dos homens,e muitas vezes eu a peguei em flagrante retribuindo sorrisinhos,piscadelas,lançando olhares maliciosos.Naquela época eu não entendia que existem mulheres que não nasceram para serem de um homem só.Elas são de todos e só assim são felizes.São como uma fonte de água pura onde os viajantes bebem,saciam sua sede e vão embora.Depois outro também vem,bebe e se vai.Zenaide era assim.Era uma mulher que logo se transformaria numa fonte.Só que naquela época eu não sabia disso e lhe fiz uma proposta para que fôssemos morar juntos.Ela aceitou.


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Não vou ficar aqui contando detalhes do nosso tempo de "casados".Só quero que saibam que nos primeiros meses fomos muito felizes até,embora eu sentisse pela Zenaide um ciúme que beirava as raias da doença. E claro,não faltou vizinho cochichando aqui e acolá dizendo que eu era um trouxa,que aceitava as traições da Zenaide,que eu era um frouxo,que homem que é homem de verdade não aceita ser corno,etc,etc...Meu Deus!!!Eu era um rapaz de 21 anos completamente enfeitiçado por aquela mulher!!Vocês achaam que eu iria me importar com o falatório da vizinhança?Eu queria mesmo é toda noite estar entrelaçado nos braços da Zenaide,sentindo seu cheiro,o calor do seu corpo,nós dois nos amando com loucura naqueles lençóis!!Que se danassem todos!E é claro que não tardou chegar o dia em que eu,já com a cabeça transtornada pela cachaça,comecei a xinga-la depois que percebi uma troca de olhares entre ela e o Pedro,o filho do açougueiro.Discutimos feio,palavrões voaram aos quatro ventos,colocando a vizinhança em polvorosa.Até que ela disse a palavra maldita,capaz de levar qualquer homem a loucura:"você é um corno mesmo João"!!!Corno!!!!!Foi o que bastou para que eu fechasse a mão e desferisse não um tabefe,mas sim,um soco bem na cara da Zenaide.Ela caiu no chão como um pacote,um saco de qualquer coisa e lá ficou caída.Eu achei que tinha matado a desgraçada e saí correndo desesperado pela rua gritando"matei a Zenaide,pelo amor de Deus,alguém me ajude!!!".Toda a vizinhança saiu de casa para ver a tragédia.Eu entrei em estado de choque.Chorava feito criança.Até que alguém constatou que a Zenaide não tava morta coisa nenhuma.Ela estava só desmaiada mesmo.E logo que acordou com a cara toda inchada começou a berrar que não queria nunca mais me ver nem pintado de ouro,que eu era um covarde,até de assassino ela me chamou,pode?E embora eu amasse muito a Zenaide,depois daquele dia decidi ir embora da cidade.Eu não podia aguentar o olhar de desprezo,de nojo,que ela me lançava toda vez que a gente se encontrava.Fui embora pra São Paulo,morar com um tio meu.

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Fiquei cinco anos morando em São Paulo.De tempo em tempo,ia para Areianópolis visitar meus pais.Confesso a vocês que toda vez que voltava para minha cidade,tentava a reconciliação com a Zenaide.Mas ela estava decidida.Pra ela tudo tinha acabado mesmo.Definitivamente.Da última vez em que nos falamos ela me disse que estava namorando um caminhoneiro chamado Antõnio.Ele era de fora,de uma cidade lá do Recife.Foi então que resolvi tomar vergonha na cara e recomeçar minha vida bem longe da Zenaide.Foi nessa época que conheci a Elisa em São Paulo,fiquei noivo dela e tudo,mas nosso noivado deu em nada.A presença da Zenaide em minha vida era muito forte ainda.

E então,no sábado de carnaval de 1985,eu decidi rever a Zenaide e tentar mais uma vez a reconciliação.Dessa vez seria tudo ou nada.Eu queria minha vida,minha alegria de volta.Se ela me dissesse um não,eu nunca mais voltaria a ve-la,eu tava decidido.

Cheguei na cidade e fui logo falar com a Zenaide mas ela estava muito ocupada com os preparativos para o desfile de carnaval que aconteceria a noite.Mas me disse que depois do desfile sairíamos para tomar uma cerveja e conversar.Fiquei todo esperançoso aguardando a hora do desfile começar.

E quando a "guerreiros do samba" entrou na avenida eu lhes digo caros leitores,que não havia mulher mais linda,mais maravilhosa,mais deslumbrante do que a Zenaide.A lua tão imensa lá no ceú iluminava seu sorriso,seu gingado,o seu rebolado provocante enlouquecendo os homens e provocando a inveja nas outras mulheres.Foi então que ela me enxergou na multidão e nossos olhos se encontraram.Ela me lançou um sorriso,um lindo sorriso e me jogou um beijoE foi nessa hora que a luz da lua fez algo brilhar na avenida.Mas não eram os adereços nem o sorriso de Zenaide.Era o brilho mortal da lâmina na mão do homem que,atropelando a multidão e gritando seu nome,se lançou sobre a Zenaide lhe desferindo um,dois,três golpes na barriga.Naquele momento parece que o mundo começou a girar em camera lenta.Lembro-me do corpo de Zenaide caindo no chão,de seu ollhar de terror e espanto,lembro-me da multidão furiosa que avançou sobre o homem fazendo a própria justiça.Lembro-me do gosto amargo de minhas lágrimas quando contemplei o corpo de minha amada estendido no asfalto ensanguentado.

-Zenaide!!!!Eu gritei.Zenaide!!!!!

Havia vida ainda em seus olhos e eles procuraram pelo som da minha voz,eu pude perceber.Mas logo seu brilho se apagou e ela morreu.A lua indiferente ao meu sofrimento continuava majestosa lá no céu iluminando a trágica noite de 1985.

***

Bem,caros leitores,aqui termina meu relato.Faltou dizer que o homem que assassinou a Zenaide foi o Antônio,o caminhoneiro de Recife.Quando a Zenaide terminou o relacionamento,ele prometeu que ela não ficaria com mais ninguém.Cumpriu a promessa.Ela nunca mais foi dele,nem minha,nem de mais ninguém.

Agora se me dão licença,tenho uma garrafa pra esvaziar.Essa é das braba,que desce queimando e afogando as mágoas.È fevereiro,é carnaval,é tempo de tristeza.











































































































































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